domingo, 24 de fevereiro de 2008

Corredor de tempos



















A profundidade do tempo, perdida na profundidade do espaço
Várias portas
Vários vidros
Vários trapos
Vários risos
Vários gritos
Vários passos
Vários jogos e empurrões
E redes?
E mais gritos e mais fugas e mais gargalhadas e outros trapos
As mesmas portas e os mesmos vidros…
Agora no chão
Como os passos e como os jogos
Um, dois, três, macaquinho chinês…
Agora pelo chão, depois de tantos risos e de tantos trapos trocados, vendidos, usados…
E a menina correu de mão a segurar a saia e pés descalços, cabelo solto muito engrenhado, como a pele muito escura, os olhos muito vivos e brancos como a brancura disfarçada dos dentes…
Correu, gritou, sorriu, lançou uma, duas, três vezes, muitas vezes. E fugiu…
Por corredores e corredores de tempo, o espaço dita a forma de se jogar e empurrar a história dos trapos (ou seria das redes?)

FOTO: Anexos demolidos no Bairro dos Pescadores – Matosinhos/Fev08

Como eram as paredes da minha infância?

Porque é que, quando era pequenina, o terraço me parecia um campo de futebol enorme, os canteiros eram hortas, e ter dois barracos atrás me parecia sinal de riqueza?
Nas paredes da minha infância os interruptores eram redondos, castanhos e ficavam no alto, muito lá no alto… Tão alto… A escuridão, das paredes da minha infância, à noite, estendia-se desde os interruptores altos à extensão dos corredores compridos…de uma casa tão pequenina e tão baixa que nem tinha tempo de ficar escura…
Porque é que, quando era pequenina, aquelas 15 escadas de pedra me pareciam tão intransponíveis, tão imponentes? Uma escadaria… Um desafio de 15 escadas em pedra.
Algumas das paredes da minha infância tinham cores por baixo de outras cores. Lembro-me que aquele lado da sala que estava sempre muito molhado e preto, descascava tinta branca e depois amarela e depois verde… Eram camadas, quase como se fossem – percebi muito mais tarde – camadas de tinta a indicar o trilho das gerações. Mas porque teria começado no verde? Porque teriam sido entretanto amarelas? Porque é que as paredes da minha infância já eram brancas, um branco orgulhoso que se achava o mais sóbrio e elegante de sempre.
Quando era pequenina, era preciso chave para ir ao frigorífico à noite e guarda-chuva para ir à despensa da garagem, quando estava a chover.
Quando era pequenina, fechava-se a porta de trás no Inverno para não entrar frio e se fazer um presépio gigante que tinha cor, luz, piscava, as imagens mudavam de lugar (achava eu que por magia), havia céu feito de tecido azul muito escuro e estrelas feitas de cartolina e papel de prata e um rio e uma ponte e água parada que eu acreditava ter vida, como acreditava que tudo tinha vida, sem perceber que a porta fechada mostrava o medo ao frio, o medo à morte.
As paredes da sala onde se via televisão, na minha infância, davam acesso às paredes dos quartos que eram pequenos, dizem-me agora, tão acolhedores, recordo-me bem. E para ir para o quarto, eu ia pela sala, e ao lado, mesmo ao lado e de portas abertas estava o quarto dos meus pais, e o da minha avó que era o mais pequeno, o mais acolhedor também.
Havia pregos nas paredes da minha infância, sinais do tempo, sinais das escolhas, sinais dos estilos, sinais de passagens. Havia riscos nas paredes da minha infância, sinais da minha infância…


(...)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Ruinas citadinas /sentir cidades/ 3



Ouvi-as sussurrar tantas histórias...
Gemiam sem medo de cair. Gemiam sem dó de morrer. Só gemiam, sussurrando histórias, recordando conversas, lembrando encontros, olhares, grandes produções e grandes festas...
As paredes da história... Os vidros estilhaçados pela força da memória.
Sussurram e gemem em convivência amena com a mudança dos tempos e sem fúria pela ignorância do passado.

Já sabes que o meu Zé namora pra tua Ana?
Pois, eu tenho-os visto muito juntos…
É, namoram! Ele não me quis dizer desde quando. Ficou todo corado quando o irmão falou disso à mesa.
Pra mim, namoram desde que tão na mesma turma. A Ana não há dia que chegue e não fale dele: que tem um trabalho com ele, que ele a veio trazer à porta…
Pois… Deve ser deve. Pela cara do meu Zé, é coisa pra ter algum tempo.
E olha que até faço gosto!
Claro, e eu também!

Viste a novela ontem?
Não, o pai do meu homem voltou a ter febre. O médico foi lá a casa…
Tá feio?
Tá! É por dias. Até os meus cunhados estão consciencializados.
É vida!
É. Dá-me pena… tantos anos a olhar por ele, ganha-se um certo amor sabes?
Claro, eu sei como é!
Mas que se passou?
Nada, aquilo não ata nem desata…

Viste o que é hoje?
Não! Nem vou ver. É sempre o mesmo!
Esparguete outra vez?
Oh… Com frango ou com bifes, é sempre o mesmo. Vai um bocado de molho pra cima, daqueles da Knorr e o povinho acha que a receita é nova.
Pode ser que haja bolo ou gelatina.
Não! Tão ali a dizer que é fruta.
Outra vez?

Sabes? A mãe da mãe e a mãe do papá trabalharam aqui… A avó gostava muito porque eram muitas senhoras e tinha trabalho à porta de casa… Depois perguntas ao pai também. Sabes? O pai já volta amanhã e desta vez é capaz de ficar pra sempre!


FOTOS: Fábrica de curtumes de S. Mamede de Infesta (Matosinhos) demolida em Fev/08

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Linha de montagem

A dureza do tecido obrigava-as a puxar muito pela linha na máquina. Às vezes até rebentavam os pespontos, e as mais novas olhavam em volta sem chegar a levantar a cabeça, sorriam aquela mais velha que ia ser a cúmplice do reparo. E o trabalho prosseguia…
O som era o de sempre, som de trabalho, som de rotina, som de sacrifício, som de ofício. Para umas, embora mentissem às vezes, era o som do inferno ensurdecedor de quem não encontrou alternativa. E havia as da arte.
Uma vez disseram-me: “Aquilo é a morte do cérebro!”
O cheiro era intenso, presente, denso, quase em forma de paladar. Sim, as peças, a rotina, o dia, tudo já tinha paladar. E, já só estranhava quem entrava a primeira vez, porque para os restantes… Estava entranhado… Entranhado no corpo, nos movimentos, na vida. Entranhado como se não existisse possibilidade de dar um passo em falso. E não havia!
A dureza dos moldes e do pano e das agulhas e dos acessórios e das cadeiras simplesmente alinhadas em frente à dureza das máquinas, faziam as mãos duras. Mais duras ainda! E ainda mais duras com o passar do tempo, à medida que se entranhava…
Também me disseram: “Era a melhor desta arte. Porque é uma arte”
E daqui passa para ali, e dali para acolá, e assim vai andando, tudo sucessivamente, não há lugar pra retorno, nem pra salto, nem pra nova indicação. Foram todas dadas, são todas assim, no seu lugar, na sua função, com o seu momento de pertencer à história diária do que acaba, talvez, em mãos menos duras.
Lembro-me de ser pequenina e perguntar à minha avó – demorou Aninhas mas cá estás – o que significava aquela sirene. “É pras senhoras entrarem ao serviço”. Porquê? Mas elas não saberiam as horas, não respeitariam o horário, não teriam o direito de prolongar, uma vez, o café, a malha feita sentada no muro ao sol (???)
“As máquinas não param, nina”.
Pois… às vezes param. Às vezes… param para sempre. Afinal a Aninhas, que não era deste tempo, não sabia que às vezes as máquinas param, as portas fecham, as paredes enfurecem-se e caem.
Mas o que é que vai acontecer? Qual é o prazo? Qual cooperativa? Desculpe, quantos milhões disse? Ah… acaba com um elemento poluidor, com as ruínas do passado, e com o vandalismo e com os comportamentos desviantes, e com o abrigo de alguns também. Está bem… mas… é habitação, são jardins… Ah… é estrada!
De facto, as máquinas não param e a Aninhas tinha razão, como sempre!

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Namorados (?!)

Trocam olhares ou sentem vontades? Como nascem os primeiros amores ou os amores primeiros ou os momentos ou os amores no momento?
Um disse que tinha sido ao primeiro olhar, outro disse que tinha sido na descoberta, e eu, e tu, e nós, e a vida, e vocês, e os meus, e quem vejo e quem festeja meios anos e quem sonha com o reencontro e porque é que ela, que merece tanto e até precisa, e vem ter comigo, e porque é que os olhares dela dizem que querem tanto ao mesmo tempo que as palavras dizem o contrario, que não importa? Como nascem os primeiros amores? Ou os outros? Ou os de sempre? E existe? Amores? Estariam envergonhados por ter um microfone à frente ou estariam inseguros porque tudo lhes exige tudo? Ou haverá coisas que não se contam? Confessam? Nervosismo ou insegurança? Medo da certeza, que se sente não é? Confiança na insegurança, sempre presente não é? Ah e seriam cinco ou seriam sete? E seria às oito ou mais cedo? E queria ou não queria? E perguntou ou decidiu aceitar? Mergulhar de cabeça por saber que quer ou depositar o corpo porque é o sonho da alma? Entretanto uns desesperam ou esses serão os lúcidos? Porque ela tem medo tal como ele, mas ele ganhou e ela está a decidir se ganha, quando antes era ele que perdia, até perceber que só decidia? Pontes pensamentos, rios e circunstâncias… Ia começar em artigo, comecei numa divida ou talvez promessa. Seria só minha? Também se chama lembrar e hoje lembrei-me muito, sorri, corri, tentei agarrar, dei a mão, dei a deixa e brindei comigo. Estava cumprido! E já é sobre amigos, sobre tudo, sobre danças aos saltos pelas mãos de uma mistura. Esta! À Precisão! E sobre namorados… Talvez?!

01h44
9.Fev/08

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Espacinhos... para ti

Levantei os olhos para o céu
Soube assim
E tive a certeza
E sorri
Ia esticar os braços
Mas aquele azul…
A luz…
Soube assim outra vez
E senti o sangue correr nas veias
E o ar entrar nos pulmões
E o chão faltar-me debaixo dos pés
Decidi aproveitar
Aquela brisa…
O verde à volta…
Soube novamente
Assim…
Simplesmente!

Queria dar-te o mundo, decidi partilhar um momento eterno.
Parabéns vida!

Sobre nascer (e descobrir também)

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Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José.
Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Mae e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstancias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país tamém. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite

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Depoimento autobiográfico, Janeiro de 1977
José João CRAVEIRINHA

sábado, 2 de fevereiro de 2008

FADO DA PROCURA

Mas porque é que a gente não se encontra
No largo da bica fui-te procurar
Campo de cebolas e eu sem te encontrar
Eu fui mesmo até à casa do fado
Mas tu não estavas em nenhum lado
Mas porque é que a gente não se encontra
Mas porque é que a gente não se encontra
Já estou sem saber o que hei-de fazer
Se seguir em frente ai madre de deus
Se voltar a trás ai chiados meus
E o rio diz que tarde infeliz
Mas porque é que a gente não se encontra
Mas porque é que a gente não se encontra
Já estou farta disto farta de verdade
Vou beber a bica sentar e pensar
Ver se esta saudade ai fica ou não fica
E talvez sem querer não querem lá ver
Sem te procurar te veja passar
Sem te procurar te veja passar

ANA MOURA

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Respirar de manhã











































































































BERÇO COM COR AO SÁBADO DE MANHÃ
Os bacalhaus são dedicados ao mesmo senhor a quem é dedicada a banca dos doces e do pão - pela(s) paciência(s) - e também havia fruta e cor e cheiro (demasiado cheiro até, mas o cheiro nunca é demais ou é?), e havia legumes e carne e peixe (já pouco)... Uma balança aqui e outra ali, a cliente a regatear preços - também sabemos quem regateia - e os pesos e as medidas (há que ter peso e medida!)... Um coelho, vários, que não era branco nem de olhos vermelhos, era um coelho! E galinhas e ovos (? ovos e galinhas ?). As vendedoras do chão e as das bancas, algumas nas lojas, algumas lojas abertas... Sacas de cores, flores de cores - os Amores Perfeitos também têm dono - panos de cores, saias de cores, cabelos brancos e pretos, moedas a tremer nos dedos, frases repetidas (umas felizes, outras conformadas), rótulos, relíquias (num mercado novo quase a estrear), gente de cá, todos de cá, e mais fruta e legumes e feijão, e muitas cores, cheiro e vozes... E acordar de manhã e respirar de manhã, estar em casa e sair acompanhada, aliás a acompanhar... E estar sempre acompanhada…
MERCADO MUNICIPAL DE GUIMARÃES (sábado, 26.jan/08)