quinta-feira, 24 de junho de 2010

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Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo deantemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amorpassou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-senuma variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que deviaser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam"praticamente" apaixonadas.Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem,tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides,borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos ocoração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha.Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor.É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode.Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá paraperceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É´a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha,não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.


*ELOGIO AO AMOR
Miguel Esteves Cardoso
in Expresso

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Por causa das circunstâncias da vida, a maior parte das pessoas não tem condições de escolher ou de aguardar o amor total. A questão colocada (e profunda) é: quem escolhe? Quem pode dizer-se capaz de escolher? Quem pode garantir a sua capacidade de não ceder ao acto de ser escolhido/a?Só quando a escolha é mútua se dá a raríssima possibilidade de felicidade. Em geral, aceita-se ser escolhido ou luta-se por quem se escolhe. Raro é o caso em que não há escolha: há descoberta mútua. Nesse caso, a amor pode vir a ser total.A mútua descoberta prescinde da escolha. Ela cria um mágico território de adivinhações. Não é, porém, o habitual. Ou o homem escolhe a mulher na base de apelos variados (sensualidade, afectividade ou segurança) ou a mulher escolhe e consegue conquistá-lo.Só conquista quem "ganha" a alguém, quem "vence" outrem. E amor não é vitória, é descoberta! É profunda afinidade inexplicável.
O "tu" não é um resultado do eu que o ama e invade. O "tu" é o máximo de liberdade porque con-vive com o eu, sem ser o eu e convive com o nós sem, igualmente, o ser.O "tu" é a descoberta e a percepção do outro. A possibilidade de ficar com ele, sem jamais ficar como ele. É saber do outro, sem sair do "eu" e sem trair o "nós".
Sem paz, não há amor. A invasão de paz talvez seja o maior indicador do sentimento que por arder parece ser o inverso: o amor.A paz é amor porque só surge quando se está ao lado de alguém sem medo, sem culpa, sem pena, sem ter que explicar ou se explicar, sem interesse algum, senão o de ficar ali.
Não tema o romantismo. Saia a cantar e olhe com alegria. Recomenda-se: ser apanhado em flagrante gostando; não se canse de olhar e olhar; não atrapalhe a convivência com teorizações; adiar, sempre que possível com beijos "aquela conversa importante que precisamos de ter"; arquivar as reclamações pela pouca atenção recebida.Não teorize sobre o amor, ame. Siga o destino dos sentimentos aqui e agora.Não tenha medo, principalmente de tudo o que teme: a sinceridade, o fracasso, vir a sofrer depois (sofrerá de qualquer maneira); abrir o coração; contar a verdade do tamanho do amor que sente.


*Do Amor - Ensaio de Enigma
Artur da Távola

(dedicado a ti, linda, morena e sorridente de biquini
às flores verdes e laranja...
E a quem tem um dom para identificar portugueses por te fazer
"ficar com os passarinhos todos")