quarta-feira, 15 de outubro de 2014

maioridade



Lembrei-me hoje com aquela nitidez que grita dos pormenores todos do momento em que recebi a notícia, dos pormenores que a antecederam e dos pormenores que se seguiram. Estava ensonada. Ensonada demais para ter sequer vontade de perguntar porque é que me arrancavam de manhã cedo da cama, num dia que adivinhava de praia, de conversas de Passeio Alegre, de namoricos de primos e primas. Mandaram-me com delicadeza, uma delicadeza cautelosa e carinhosa que só decifrei mais tarde, vestir-me porque os tios iam levar-me a Guimarães “para ir ter com a mana”. Porquê se eu estava feliz e contente “depositada” na Póvoa enquanto à minha irmã tinham dada a tarefa de estar naquele estado de alerta reservado aos mais velhos, aos mais maduros, aos conscientes? Aos maiores de idade?! Calções amarelos e blusa caviada em azul muito vivo. Só mais tarde decifrei o olhar reprovador mas contido a tempo da tia quando entrei no carro. “Deixa… Ela lá troca de roupa. Alguém terá chave de casa deles e é mesmo ao pé”, tio antes de iniciar a viagem estranhamente furiosa face ao que as curvas Póvoa/Guimarães suportavam. Pararam em casa dos avós paternos. Porquê se ele, o avô, estava onde eu queria estar, provavelmente a revoltar-se porque às 10 da manhã já é muito tarde para os netos estarem na cama sem aproveitarem o sol e a bandeira verde. A minha irmã entrou devagarinho como quem quer prolongar, no pé ante pé, o fim anunciado de serenidade. Bem pensado agora, demasiado devagarinho até. Devagarinho demais. Exigia-se mais confronto, mais embate, mais violência. Não se prepara com silêncio a reação a uma notícia que em voz baixa se grita. E disse-me uma e outra vez devagarinho para ter a certeza que tinha percebido bem porque não havia nada a fazer. “Agora trocas de roupa para ir ter com a mãe e com o pai”. O céu anunciava despejar-se todo em dia de verão tórrido. Mas tardava! Olhei à volta e apreciei  a sala enquanto me faziam chegar, sem que pedisse, bolachas de pacote e água engarrafada. Encostaram-se um bocadinho a sussurrar. Os tios, porque lhes coube ir tratar da “encomenda” mais nova, não possuíam ainda aqueles detalhes de horas nem para preencher a curiosidade face ao consumado, nem sobre os rituais seguintes. A maioridade madura e responsável suportava isso (a pequena não!). Outra vez aquele odor de sussurro: não se fala baixo quando as notícias nos explodem os ouvidos! Só se andam uns metros entre a casa dos avós e a minha casa de sempre, a casa dela, da Aninhas! Uns metros que transpiraram eternidade: tanta pena depositada em olhos de vizinhos. Alguém comentou que a menina devia trocar de roupa. “E vai! (que não me aborreçam a menina!)”, atirou a irmã.
Lembrei-me hoje com aquela nitidez gritante de céu limpo que se abre para desabar sem anunciar a fúria que me levaram para ir a ir ver e lá estava a mãe e o pai e mais preparativos, frases bonitas, quando o que se quer é um abanão, sobre ainda ter feito a comunhão solene com uma túnica deita à mão por ela. Seguiram-se muitas e muitas horas de Avé Marias e Pai Nossos, reencontros com “o lado” de Braga que via mais por altura das festas e dos aniversários, malta que depositava o inconformismo sobretudo na “mais novinha”, refeições em casas alheias mais fartas do que se imaginava dada a estranheza do convite. “E agora quem é que lhe abre a porta quando vier da escola? Foi ela que lhe ensinou a tabuada… Cantava-lhe todas as noites ao deitar para evitar o choro nervoso na véspera do teste de matemática”, ouviu-se a mãe dizer repetidamente. Seguiram-se FINALMENTE gritos (não meus!) mas, honra seja feita, a roupa TAMBÉM FINALMENTE acompanhava bem o estado de alma.
Lembrei-me hoje com aquela nitidez explosiva de fazer latejar a cabeça toda de tantos pormenores da notícia que afinal, pese embora tantos preparativos e recomendações, só assimilei semanas depois, fechava-se o verão para dar a vez ao ano letivo. Pela primeira vez tive de rodar a chave na porta no regresso a casa e não havia lanche à espera. Dói-me hoje como há 18 anos atrás. A verdade é que, às vezes descortinada de imediato outras vezes envolvida na normalidade, a dor da memória sente-se todos os dias.
Dizem que quando alguém parte, ficamos mais frágeis… Neste caso deu-se o contrário! Todos os dias, ainda que às vezes o reconheça de imediato e outras vezes pareça camuflado na rotina, percebo que aqueles dias de assimilação dolorida – a primeira verdadeira que julgo ter sentido, a primeira que tenho memória – me deixaram muito mais dureza que fragilidade… Há uma qualquer força fria resistente que se apodera de quem precocemente foi alvo de pena e de lamento e de preparativos demasiado prolongados em voz baixa e dócil também em demasia.

(sobre +- 27 de julho de 1996)
Por “NINA”, sempre tua, minha ANINHAS!!

Sem comentários: