sábado, 25 de agosto de 2007

Sozinho... à espera

Arrastava-se pela praia queimado pelo sol, a pele já estava gasta, era grossa, exposta aos raios, exposta ao sal. Os dedos até já tinham perdido a conta às feridas, que saravam até ao próximo anzol ferrugento, até à próxima rede rasgada. Arrastava-se pela praia porque já não sabia o que era levantar os pés, grossos e ásperos, e porque a pele conhecia a areia e desconhecia, há muito, o uso de sapatos, ele próprio questionava-lhes o conforto, enterrando ainda mais os pés pesados, na terra molhada. Os colegas do tasco invejavam-lhe a cabeleira grisalha, um cabelo cada vez mais claro e cada vez mais fino, grande e vasto para a idade, sempre penteado de acordo com o sopro do vento e cortado a lamina, por jeito e amizade, por uma das peixeiras, uma das habilidosas, da aldeia. A roupa, trocava-a como se cumprisse um ritual. Traje de trabalho: uns pares de camisolas de lá, calções de botões, e traje de festa (domingueiro, chamado "o de ir à missa"): calças compridas, camisa branca de colarinho esfolado pelos anos de uso, ou azul, muito comprida e larga por seu primeiro dono abastado em gordura.
Os restos de peixe sabiam-lhe, todos os dias, a iguarias preparadas por ninfas do mar, mas eram as mãos grossas e secas, as suas as responsaveis pelo único repasto que lhe dava gozo. Preferia acreditar na qualidade da ementa, e fazia bem. Há umas semanas que o vinho tinha acabado, ou melhor a zurrapa de vinho velho misturado. Restava-lhe o "cheirinho" que tomava para acompanhar o cigarro cravado todos os dias, à mesma hora, ao mesmo "patrão" que só ia ao tasco para ler o jornal do povo, que parecia mal levar para casa.
Calado, gostava pouco de dar nas vistas, chegava discreto e anunciava-se com um quase inaudível "boa noite", pouco dado às cartas, por preferir o silêncio do xadrez, era rápido no jogo, sucinto nas frases trocadas, sôfrego nos goles. Cigarro acendido pelo parceiro, olhos no chão, leve acenar de cabeça, reflectia-se no caminho para casa.
Depois os olhos procuraram qualquer coisa para entreter a falta de sono, a soleira da porta convidou-o a sentar, os que passavam cumprimentavam, alguns com fome de conversa rendiam-se rápido às respostas monossilábicas. Tempo de ver o que as estrelas reservavam para o dia seguinte: "Vai estar bom tempo", atirava para despachar que lhe incomodava a tranquilidade. Era respeitado por saber ler as estrelas e por entender bem as marés. Ainda ajudou o vizinho, o bêbado da rua, a rodar a chave na porta, ouviu gritos, viu luzes acenderem-se e curiosos escondidos atrás de cortinas de renda branca.
Até que, serenada a rua e cansada a vista, deitou-se, não dormiu, há anos que não dormia, mas esqueceu a vida, sonhou (sim, sonhou acordado) com o barco de outrora, com a vida de antes, com a caldeirada de peixe que serviu da última vez que recebeu gente em casa. Boa forma de passar as horas.
Todos os dias, a mesma rotina.
Na sua pose de sempre, sorria uma vez: ao levantar, rezada a lenga-lenga do costume, e mesmo antes de comer e depois de passar agua pelo rosto queimado, sorria… Sorria quando beijava um dos dedos da mão esquerda, o anelar, o que servia de refugio a duas alianças de ouro, muito iguais, mesma gravação. A única, mesmo a única, riqueza que tinha entre quatro paredes com cama, cadeira, fogão… cada vez menos móveis, nada a decorar, além da foto antiga mantida à cabeceira, qual santuario improvisado.
Lembrava-se bem do dia em que tinha trocado o sono e os sonhos com planos, pelo correr das horas entre recordações. Lembrava-se que naquele dia, a sua mão esquerda tinha ganho riqueza, já o coração tinha ficado mais pobre.

Era um novo dia…
Chamavam-lhe o "Velho do Mar da Aldeia de Baixo", nome longo para quem apenas era um homem só que estava à espera.

Sem comentários: